Recordar de Dona Irmgard é um agradável exercício, por inúmeros motivos. Primeiro porque minha história enquanto pesquisador de História da Dança está intimamente e entusiasticamente marcada pelo nosso encontro. Mas também pela descoberta e reafirmação da importante figura que ela foi para a cena cultural do Rio Grande do Sul. E talvez mais do que tudo isso, de uma amiga querida, sensível, bem-humorada e generosa.
Quando comecei a me aventurar a pesquisar as origens da dança em Porto Alegre contava com uma cópia datilografada das pesquisas de Morgada Cunha e Cecy Franck, que na época não haviam sido publicadas ainda. Lá aparecia o nome de Irmgard Hofmann Azambuja e algumas linhas sobre seu trabalho na década de 30. Num primeiro momento ficou apenas um desejo de intrigante de saber mais. Perguntava para professoras de balé mais antigas, buscava encontrar outras referências sem sucesso. Não sabia se ainda estava viva ou não. Em 2003, quando assumi as aulas de História da Dança, na Universidade Estadual do RS, propus aos alunos o exercício investigativo das origens da dança no Estado. A uma das alunas coube Irmgard e uma certa tristeza de tão pouco material sobre ela. Mas a aluna, Rose Nunes, começou a procurar, indo, inclusive investigar guias telefônicos antigos, até que encontrou uma senhora de mesmo nome, ligou e perguntou se era da residência de Irmgard. E ouviu a seguinte resposta: Sim, é ela mesma.
A partir daí minha aluna produziu um belo trabalho inicial e seguiram-se vários encontros meus com Dona Irmgard em sua residência, no chá da tarde. Foi assim que fomos descobrindo que com pouco mais de sete anos, em 1925, ela já havia subido ao palco, em uma ópera no Theatro São Pedro. Que formava, ao lado de Lya Bastian Meyer, Tony Petzhold e Salma Chemale, os pilares do balé clássico em Porto Alegre. Que as quatro dividiram o palco, em 1928, na primeira apresentação do Instituto de Cultura Física, de Nenê Dreher e Mina Black. Que teve sua própria escola de balé no final da década de 30, o Instituto Coreográfico Irmgard Hofmann. Que a jovem bailarina realizou viagem de estudos pelo Brasil, fazendo aulas com mestres como o tcheco Vaslav Veltscheck, do Municipal do Rio de Janeiro. Que, em 1938, suas bailarinas Leda Acauan, Berenice Faedrich e Érica Renner apresentam Valsas e Danças Húngaras, de Brahms, que encantou o crítico do jornal Correio do Povo, Aldo Obino.
Ficamos sabendo que ela deixou de ser professora por opção (e por conselho de um crítico do jornal Diário de Notícias), para ser artista e solista que se apresentou em inúmeras cidades do Estado, divulgando a arte do balé e encantando o público com seu talento e técnica ao som de Chopin, Debussy e Grieg.
E as surpresas não se esgotavam. Com orgulho especial ela revelou que foi primeiro violino da OSPA, tendo sido regida pelo maestro e compositor Villa-Lobos. Que depois de ter se afastado dos palcos não largou a dança e ampliou seu interesse para ioga (tendo publicado três livros sobre o tema). E que ainda tinha uma turma de alunas setuagenárias que se encontram em sua casa, não apenas para conversar, mas para se exercitar e dançar. E, como talvez, meu olhar traduzisse incredulidade, trouxe uma fita VHS em que me mostrou um balé cósmico no qual ela dançava com as alunas, representando astros, planetas e outros corpos celestes. Sim, aquele senhora que me servia chá e em breve completaria 90 anos, dançava e comandava o baile ainda.
Como se não bastasse, Dona Irmgard me confiou, por 24 horas, seus cadernos de recortes e fotos para que eu fizesse cópias. Álbuns amarelados com programas e críticas de jornais. Assim, pude ir aos poucos recuperando essa decisiva e inestimável participação na formação da dança cênica em nosso Estado.
E tinha mais. De uma gaveta ela me revelou um tesouro (ainda que ela não assim o considerasse): um álbum com centenas de fotografias de poses e seqüências de balé com a descrição escrita à mão. Um material da década de 1930 e que arrisco afirmar que possa ser o primeiro manual sistematizado de balé no Brasil.
Enfim, sucederam-se vários encontros para minha felicidade. Tardes inteiras ouvindo histórias de dança. E um convite do qual muito me honro, de estar presente no sua festa de aniversário de 90 anos. Segundo Irmgard, em entrevista à pesquisadora Rose Nunes, em 2003, declarou que nunca parou de dançar: “danço até hoje, em minha intimidade, basta ouvir alguma música que me comova, ou desperte minha atenção por sua beleza, ou até mesmo quando acontece algum fato ou momento que me comova, sinto vontade de dançar.”
E foi inevitável, frente ao reconhecimento de tanto trabalho para afirmar a arte da dança, homenageá-la em 2005, no Dia Internacional da Dança, quando cerca de 2 mil pessoas aplaudiram-na em pé no Salão de Atos da UFRGS. E, posteriormente, indicá-la ao Prêmio Joaquim Felizardo, que destaca todos aqueles que tiveram uma contribuição inestimável à cultura local.
Não consegui realizar, contudo, um plano secreto nosso. O de no Dia Internacional da Dança, valsarmos junto para comemorar a data, dando início a um grande baile. Ela tinha aceito o convite, mas acabei envolvido com lidas acadêmicas nos últimos anos que me afastaram dessa concretização. Azar o meu, pois Dona Irmgard seguiu seu bailado pelo grande salão da galáxia, afinal esse é o lugar de toda estrela. Se um dia arrumar outra parceira para minha valsa (que terá como intuito homenageá-la mais uma vez), tenho certeza que ela vai autorizar, e uma luzinha vai estar brilhando mais forte lá no céu, ajudando a marcar a contagem: um, dois e três; um, dois e três; um, dois e três...
Airton Tomazzoni, 24 de outubro de 2010.